O quanto de poder estamos dando ao capitalismo e o quanto estamos deixando que ele influencie nossa mente? Por que sentimos que precisamos de tantos tons de batom, pares de sapato, camisetas, decorações para casa, esmaltes, roupas de academia, livros que ficam intocados na estante só para não “estragar”? Não é curioso como, de repente, tudo isso parece essencial para afirmar quem somos?
Antes de mais nada, quero fazer um breve e simples resumo sobre o que é o capitalismo: o capitalismo é um sistema em que as pessoas e empresas privadas controlam o dinheiro, as fábricas e os produtos, sempre buscando o lucro acima de tudo. Nesse modelo, quem já tem dinheiro e poder costuma ficar cada vez mais rico, enquanto a maioria trabalha muito para ganhar pouco. O capitalismo incentiva o consumo exagerado e faz com que a riqueza se concentre nas mãos de poucos, criando desigualdade e dificultando a vida de quem tem menos oportunidades.
Faz menos de um ano que comecei um exercício mental: antes de comprar qualquer coisa, penso por pelo menos três dias se realmente preciso daquilo, qual o motivo do desejo e se será útil a longo prazo. Em contraste, anos atrás, eu vasculhava minha memória para lembrar o último evento em que usei determinada roupa, evitava repetir sapato, camiseta, vestido. Hoje, percebo o quanto esse comportamento foi moldado por uma lógica capitalista que nos ensina a nunca estar satisfeitos, a sempre desejar o novo.
Vivemos uma era em que comprar ficou fácil demais. Anúncios, influencers, algoritmos: tudo trabalha para que a próxima compra esteja a um clique de distância. Se você mora em uma cidade grande, em menos de 24 horas o pacote chega à sua porta. E a sensação de satisfação é tão imediata que, para muitos, comprar virou vício – um escape emocional, quase como descontar sentimentos na comida ou em outros hábitos compulsivos. Estudos mostram que o consumo compulsivo, chamado de oniomania, é um transtorno causado pela ansiedade e pela busca de alívio para sentimentos negativos. O prazer da compra é breve, seguido por culpa e, muitas vezes, endividamento. Não é raro ver pessoas que, ao invés de buscar terapia, tentam preencher vazios emocionais acumulando objetos, roupas, sapatos, livros – como se a felicidade estivesse sempre no próximo pacote.
A cultura do consumo nos vende a promessa de felicidade, mas entrega, muitas vezes, insatisfação e sofrimento psíquico. Como destaca o sociólogo Breno Bittencourt Santos, a incessante busca pelo consumo é, na verdade, uma busca por felicidade, mas que nunca se completa: “A aquisição dos objetos na nossa sociedade traduz-se pela ilusão de que o consumo pode preencher a demanda de felicidade”.
O mais cruel é perceber que, nesse jogo, só quem realmente ganha são os donos do capital. O ciclo se retroalimenta: somos manipulados pelo marketing e pelos algoritmos a desejar o que não precisamos, gastamos dinheiro, geramos lixo, financiamos uma cadeia produtiva que, muitas vezes, explora pessoas em condições degradantes para entregar produtos baratos e descartáveis. E, no fim, o vazio permanece, pedindo a próxima compra.
Talvez a reflexão mais urgente seja: por que precisamos tanto do que não precisamos? Até quando vamos permitir que o capitalismo dite nossos desejos, nossa autoestima, nossa felicidade?
E por que eu falo tanto do capitalismo nesse texto? Porque, no fim das contas, quem realmente lucra com esse nosso impulso de comprar, acumular e descartar são os donos do capital. São eles que recebem o dinheiro das vendas e investem pesado em marketing e algoritmos para manipular nossos desejos, nos convencendo de que precisamos de coisas que, no fundo, não precisamos. E nós, o que ganhamos? Mais um look de academia, mais um tênis, mais uma bolsa – objetos que, rapidamente, perdem o encanto e se transformam em lixo.
Impacto no meio ambiente
O problema é que esse ciclo de consumo não é só inofensivo para o nosso bolso, mas devastador para o planeta. Cada produto novo que compramos representa mais recursos naturais extraídos, mais energia consumida, mais poluição gerada e, claro, mais resíduos.
Globalmente, a geração de lixo urbano deve saltar de 2,7 bilhões de toneladas em 2020 para 3,8 bilhões até 2050, com países de alta renda produzindo 34% do total mundial enquanto representam apenas 16% da população. A indústria da moda é apenas uma peça desse quebra-cabeça: plataformas como Shein, Temu, AliExpress e Shopee estão redefinindo o conceito de “descartável”, vendendo produtos que duram semanas a preços que escondem custos ambientais estratosféricos.
O fenômeno Shein ilustra a escala do problema. Em 2023, a marca emitiu 16,7 milhões de toneladas de CO₂ – equivalente a quatro usinas termelétricas a carvão. Seus 10 mil novos produtos diários, feitos com 76% de poliéster, geram um tsunami de microplásticos: uma única lavagem de roupa sintética libera até 700 mil fibras, contribuindo para as 500 mil toneladas anuais que sufocam oceanos. Não à toa, 35% de todo microplástico primário no planeta vem de têxteis, e estudos já encontram essas partículas em placentas humanas e tecido cerebral.
A logística do descarte imediato é turbinada pelo e-commerce global. A Temu envia 1,6 milhão de pacotes diários, enquanto a AliExpress movimenta 165 bilhões de embalagens/ano – muitas com plásticos não recicláveis que acabam em lixões como o de Sudokwon (Coreia do Sul), onde 20 mil toneladas de lixo são despejadas por dia. Nos EUA, maior produtor de resíduos do mundo, cada pessoa gera 811 kg de lixo/ano, enquanto a Turquia lidera em descarte ilegal, com 176 kg por pessoa em terrenos abertos.
O mito da “pechincha ecológica” desmorona quando analisamos o ciclo completo. Um estudo de 2022 revelou que 93 produtos testados de Shein e AliExpress continham ftalatos 428 vezes acima do limite seguro e chumbo 278 vezes além do permitido. Cada tênis barato comprado nessas plataformas esconde uma pegada de 13,6 kg de CO₂, enquanto o transporte aéreo – responsável por 25% das emissões globais – acelera a crise climática.
O resultado é um planeta intoxicado em múltiplas frentes:
- Solo: No Deserto do Atacama, 59 mil toneladas de roupas descartadas formam montanhas tóxicas visíveis do espaço através de satélites.
- Água: 8,3 milhões de toneladas de poluição plástica da moda contaminam rios e oceanos anualmente.
- Ar: A incineração de resíduos – prática de 17 países da OCDE – libera dioxinas cancerígenas, enquanto o transporte global de mercadorias emite mais CO₂ que toda a aviação comercial.
Esses dados revelam uma verdade inconveniente: a cultura do “compre-use-descarte” está nos levando a um ponto de não retorno. Cada clique em “finalizar compra” em plataformas de ultraconsumo financia não só o acúmulo de lixo, mas uma cadeia de destruição que atravessa oceanos, solos e até nosso corpo.
E o nosso maior erro é acreditar que a nossa ação individual não faz diferença. São mais de 200 milhões de pessoas no Brasil e bilhões no mundo que, muitas vezes, pensam da mesma forma: “se só eu mudar, nada vai acontecer”. Mas é justamente essa mentalidade coletiva que multiplica o problema em escala global e faz com que pequenas escolhas se tornem grandes impactos quando somadas.
Quando milhões de pessoas deixam de agir, o resultado é catastrófico: cada ato de descaso se soma ao próximo, e o futuro da nossa própria espécie fica ameaçado. A verdade é que ninguém é pequeno demais para fazer a diferença. Cada atitude, por menor que pareça – recusar uma sacola plástica, optar por produtos duráveis, consumir menos – inspira outros ao redor e cria um efeito multiplicador, capaz de transformar hábitos em toda uma comunidade. O futuro está, sim, nas mãos de cada um que escolhe agir, e ignorar isso é abrir mão da possibilidade de um amanhã digno para todos.
Não sou só eu que vejo esse ciclo como perverso. O filósofo Zygmunt Bauman, por exemplo, descreve a sociedade de consumo como uma máquina de criar desejos artificiais e transformar pessoas em mercadorias, sempre insatisfeitas e em busca do próximo objeto que prometa felicidade. Herbert Marcuse, da Escola de Frankfurt, já denunciava como a sociedade industrial cria necessidades artificiais para manter o ciclo de produção e consumo, nos afastando das verdadeiras necessidades humanas. E Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano, ao falar sobre a autoexploração, alerta que o sistema faz com que a culpa e o peso do consumo recaia sobre o indivíduo, enquanto o capital segue acumulando lucros e perpetuando a desigualdade.
Cada escolha de consumo é um ato político. Ao comprar sem pensar, financiamos a destruição ambiental, a exploração do trabalho e o acúmulo de riqueza nas mãos de poucos. O preço real daquele tênis ou daquela bolsa vai muito além da etiqueta – ele é pago em recursos naturais, em saúde ambiental, em dignidade humana. E, gostemos ou não, essa conta também é nossa.
“Ah, mas eu não tenho dinheiro pra comprar coisa boa, isso é muito caro!” Se esse pensamento apareceu aí, talvez eu não tenha sido clara o suficiente no propósito desse texto. Não se trata de consumir produtos caros ou de luxo, mas de repensar o volume e a qualidade do que compramos. Ao invés de gastar em 30 itens baratos, que vão durar pouco ou serão pouco usados antes de virarem lixo, faz muito mais sentido investir em um único produto de qualidade, que realmente atenda sua necessidade e tenha uma vida útil maior.
Hoje, somos bombardeados por produtos de baixíssima qualidade vendidos a preços irrisórios. O apelo é sempre o mesmo: “Aproveite, está barato!” Mas o barato, quase sempre, sai caro. Esses produtos geralmente têm vida útil curtíssima, duram semanas ou meses, e logo se somam à montanha de lixo que já sufoca o planeta. Se somarmos o dinheiro gasto em tantas pequenas compras inúteis, perceberemos que poderíamos ter investido em algo realmente necessário, durável e, muitas vezes, até mais econômico a longo prazo.
A lógica do “mais é melhor” só beneficia quem vende. Para nós, sobra o acúmulo de coisas e de lixo. Produtos descartáveis, por exemplo, são feitos com recursos naturais não renováveis e levam séculos para se decompor, além de poluir rios, mares e solos. O Brasil, por exemplo, já ultrapassa 82 milhões de toneladas de lixo urbano por ano, e grande parte desse volume é composta por embalagens e produtos de uso único, que poderiam ser evitados com escolhas mais conscientes.
Então, antes de comprar mais um par de sapatos ou mais uma camiseta, vale se perguntar: o que tenho já não atende? Preciso mesmo desse novo item, ou estou apenas cedendo à pressão do marketing e à ilusão de necessidade criada pelo consumo desenfreado? Não se trata de culpa, de pensar “tem tanta gente precisando e eu tenho demais”. Trata-se de refletir sobre o real preço de cada escolha: não só o valor do produto, mas o custo ambiental, social e até emocional de consumir sem pensar.
O consumo consciente propõe exatamente isso: planejar, pesquisar, comprar menos e melhor, priorizando qualidade, durabilidade e responsabilidade socioambiental. Essa atitude não é sobre abrir mão do conforto ou da satisfação pessoal, mas sobre encontrar equilíbrio, evitar desperdícios e contribuir para um mundo mais justo e sustentável. Como diz o conceito minimalista, menos é mais: menos acúmulo, menos lixo, menos impacto – e, em troca, mais tranquilidade, saúde financeira e qualidade de vida.
No fim das contas, consumir de forma consciente é um ato de responsabilidade consigo, com o planeta e com as próximas gerações. O barato, quando acumulado, custa caro para todos nós.
Às vezes me é recomendado um vídeo de alguma influencer exibindo sua coleção interminável de maquiagens e perfumes e fico pensando: quanto disso ela realmente usa? Quantos desses produtos acabam vencendo antes de atingirem a metade ou até mesmo de serem abertos? Pra que tantos glosses de cores e sabores diferentes? Pra que sempre testar uma nova marca de maquiagem, se você já encontrou uma que funciona pra sua pele? Não é só sobre variedade, é sobre um impulso constante de novidade, alimentado por uma indústria que lucra com a nossa insatisfação.
Não é à toa que o mercado de beleza está em plena expansão, impulsionado justamente por essa lógica de novidade e excesso. Só na América Latina, as vendas de perfumes de prestígio cresceram 34% em 2024, muito graças à influência de redes sociais e do TikTok, que transformaram o consumo em espetáculo e criaram uma geração que valoriza experiências sensoriais e coleções de produtos. No Brasil, 68% das pessoas já compraram versões “dupe” –produtos que, embora não sejam falsificados, são inspirados ou replicados em termos de design, funcionalidade ou aparência – de perfumes famosos, motivadas tanto pelo preço quanto pela influência digital. E não é só impressão: pesquisas mostram que os influenciadores digitais de fato impactam diretamente o comportamento de consumo, especialmente no segmento de beleza e maquiagem, criando tendências e estimulando o desejo de compra por produtos que, muitas vezes, não têm uso real no dia a dia. O mecanismo é simples: a confiança e identificação com a influencer faz com que a indicação pareça uma dica de amiga, e não uma estratégia de venda.
E aí entra a questão da marca. Quanto você recebe para usar o “uniforme” de uma empresa, desfilando o logo gigante no peito? Na prática, você paga – e paga caro – para fazer propaganda gratuita. Muitas vezes, o preço elevado não está relacionado à qualidade, mas ao valor simbólico, ao status que aquela marca representa. Marcas investem pesado em branding para criar esse desejo, associando seus produtos a exclusividade, pertencimento e até autoestima. O desejo por tênis de edição limitada, por exemplo, pouco tem a ver com conforto ou durabilidade, e muito mais com a sensação de fazer parte de um grupo seleto, de “ter algo raro”. Não à toa, o mercado de sneakers e de colecionáveis cresce alimentado por essa lógica, onde o ato de colecionar vira um hobby, uma forma de expressar identidade e até de buscar segurança emocional.
A maioria de nós não está comprando qualidade, mas sim comprando pertencimento, status, sensação de novidade. E tudo isso, claro, enche o bolso dos donos das marcas, enquanto a gente paga para ser outdoor ambulante. Se você tem mais de um tênis igual, mais bolsas do que pode usar, mais maquiagem do que consegue gastar antes de vencer, talvez valha se perguntar: você está comprando um produto ou comprando a ilusão de ser alguém diferente? O capitalismo sabe muito bem como transformar desejo em necessidade – e, no processo, transformar nosso dinheiro em lixo e nosso tempo em ansiedade.
Que tal um novo hobbie?
A nova moda das redes sociais é pular de um hobbie para outro, quase como se fosse uma maratona de novidades. Eu mesma já bordei e, empolgada, comprei centenas de linhas de cores e materiais diferentes. Já fui tentada a comprar aqueles livros de colorir com caixas e mais caixas de canetinhas, a experimentar cerâmica fria, cerâmica quente, a entrar na onda do GymRats… Tudo isso, claro, impulsionada pelo capitalismo e pela promessa de uma satisfação instantânea. O problema é que, na maioria das vezes, esse entusiasmo dura pouco: logo abandono o hobbie, e o que fica é uma pilha de materiais encostados, que provavelmente nunca mais vou usar. Resultado? Mais lixo, mais recursos naturais desperdiçados, mais dinheiro gasto em algo que não trouxe realização de verdade.
Esse ciclo de consumo por impulso é reforçado pelo ambiente digital em que vivemos. O capitalismo de vigilância, como define a pesquisadora Shoshana Zuboff, usa algoritmos para mapear nossos interesses e emoções, antecipando nossos desejos e nos bombardeando com sugestões personalizadas. O objetivo é nos manter em constante movimento, sempre em busca do próximo estímulo, do próximo produto, do próximo hobbie. Não à toa, a obsolescência programada e o design de produtos de vida útil curta alimentam essa lógica: quanto mais rápido abandonamos um interesse, mais rapidamente compramos algo novo, gerando um ciclo infinito de consumo e descarte.
A solução que encontrei para fugir desse ciclo foi simples, mas transformadora: antes de investir em materiais para um novo hobbie, passo pelo menos três meses experimentando a atividade em oficinas, aulas ou espaços compartilhados. Só depois desse tempo, se percebo que o interesse realmente se mantém, aí sim penso em comprar meus próprios materiais. Assim, evito o desperdício – tanto de dinheiro quanto de recursos naturais – e pratico um consumo mais consciente, alinhado com a ideia de comprar apenas o necessário e de forma planejada.
Esse tipo de escolha pode parecer pequena, mas faz toda a diferença. Cada vez que evitamos uma compra por impulso, reduzimos a pressão sobre os recursos naturais, diminuímos a geração de resíduos e damos um passo em direção a uma relação mais saudável com o consumo. Afinal, como mostram estudos sobre o impacto ambiental do consumismo, a produção em larga escala para suprir demandas criadas artificialmente é uma das principais causas da degradação ambiental, do esgotamento de recursos e do aumento das emissões de gases de efeito estufa.
No fundo, o que está em jogo não é só o tamanho da nossa pilha de materiais parados, mas o impacto coletivo das nossas escolhas. Repensar o consumo, inclusive nos hobbies, é um ato de responsabilidade – com o planeta, com as próximas gerações e, principalmente, com nós mesmos.
Coleções e fanatismo
O que me motivou a escrever esse texto foi um episódio recente que me deixou, sinceramente, chocada. Durante um clube de leitura, um colega comentou que compra livros físicos, mas sente dó de “estragar” o livro lendo, então coloca o exemplar na estante e lê a versão digital. Fiquei sem palavras. Por quê? Qual o sentido de adquirir um objeto só para deixá-lo intacto, como se sua função fosse apenas decorar a prateleira? Precisei desligar a câmera durante o encontro on-line para digerir aquilo.
Confesso que, na adolescência, eu também era apegada aos meus livros. Não gostava de emprestar, queria todos comigo, sentia ciúmes dos meus livros. Ao mesmo tempo, cresci vendo minha mãe, professora, guardar uma infinidade de materiais “para um dia usar” – o que só gerava acúmulo e uma crescente pilha de tralha. Isso me marcou: sempre tive pavor de acumular coisas inúteis. Por conta disso, adquiri um hábito de doar algo se estou a mais de dois anos sem utilizar, porque pode ser útil pra outra pessoa. Mas quanto ao meu apego aos livros, a maioria dos que eu lia era digital, porque nunca tive dinheiro para montar uma coleção física de tudo que já li. Aliás, nem lembro de metade dos títulos, e os poucos livros que emprestei quase nunca voltaram. Um dia, decidi doar todos os meus livros para um sebo.
Foi só então que me perguntei: por que manter tantos livros na estante se eu detesto reler? Por que esse apego ao objeto, se o valor real está na experiência da leitura? Voltei a ler livros físicos recentemente, mas com outro olhar: agora gosto de grifar, anotar, marcar as partes importantes – especialmente em leituras de não-ficção, como livros recomendados pelo Altruísmo Eficaz ou sobre maternidade positiva, em que absorver o conteúdo faz diferença. Antes, jamais faria isso. Achava um absurdo ver alguém dobrar páginas ou usar marcador. Mas por quê?
Hoje entendo que esse incômodo vinha muito mais de um apego ao objeto em si do que ao conteúdo. E, sinceramente, não faz sentido. Estudos mostram que o vínculo emocional com o livro físico é real: sentimos prazer no toque, no cheiro, na materialidade do papel – e isso pode até melhorar a compreensão e a memória do que lemos. Mas, ao mesmo tempo, esse apego pode virar armadilha: colecionar por colecionar, sem uso real, é só mais uma forma de consumir e acumular sem propósito.
A solução que encontrei foi simples: termino um livro, ofereço para alguém. Aviso que está grifado, que talvez tenha até alguns poucos rabiscos do meu filho, mas que nada disso impede a leitura. Não me preocupo se vão devolver ou não – o importante é que o livro circule, que gere novas experiências, novas reflexões que podem mudar a vida de alguém ao invés de ficar parado na estante acumulando poeira sem nunca ser lido novamente. Doar livros, aliás, é um ato que faz diferença: promove acesso à leitura, fortalece a comunidade e reduz o desperdício de recursos naturais. Cada livro compartilhado multiplica seu valor, enquanto o acúmulo só alimenta o ciclo do consumo e do descarte.
O que importa não é o estado perfeito do objeto, mas o quanto ele foi vivido, compartilhado, útil. Um livro rabiscado, com páginas dobradas, é prova de que ele cumpriu seu papel – e isso vale infinitamente mais do que uma lombada intacta numa estante.
E você também já parou pra pensar nessa coisa de ser muito fã de algo? Eu, por exemplo, na adolescência era completamente fã de Restart e One Direction. Minha parede era tomada por pôsteres de revista, eu colecionava todas as edições em que eles apareciam, comprava todos os CDs e DVDs. Não cheguei a usar calça colorida, mas tinha “merch”, tipo aqueles casacos “Eu <3 One Direction”. Colecionava até ingresso de cinema dos filmes do Harry Potter. E, quando passei dos 17, joguei tudo fora. Olhando agora, vejo como tudo isso foi alimentado pelo capitalismo: essa ideia de que precisamos sempre mostrar para o mundo do que gostamos, quais são nossos gostos e personalidade, como se nossa identidade dependesse dos objetos que acumulamos.
Hoje vejo muitos adultos fazendo exatamente a mesma coisa, só que com outros temas: coleções de coisas com estampa de cachorro ou gato, homens que acumulam itens do time de futebol, coleções de marcas como Nike, Farm, Hering. Não há diferença alguma entre isso e aquela adolescente manipulada a colecionar tudo do One Direction. É o mesmo mecanismo: um nível de fanatismo por objetos que, além de não terem utilidade real, só vão virar mais e mais lixo.
O colecionismo, segundo estudos, é uma prática antiga e profundamente emocional: colecionamos não por necessidade, mas pelo significado simbólico que atribuímos aos objetos, pelo prazer momentâneo de possuir algo que nos conecta a um grupo ou reforça uma identidade. Mas, quando alimentado pelo consumo desenfreado e pela pressão da mídia, esse hábito pode se transformar em compulsão, levando pessoas a gastarem mais do que podem e a acumularem objetos que logo perdem o sentido. O capitalismo se aproveita desse desejo de pertencimento e reconhecimento, criando produtos e experiências para cada nicho, para cada fandom, para cada tribo – e, assim, transforma até nossas paixões em oportunidade de lucro.
Além do impacto psicológico, esse comportamento tem consequências ambientais graves. Cada coleção descartada, cada objeto que perde o sentido, vira lixo. E quanto mais consumimos, mais resíduos produzimos: a indústria da moda, por exemplo, já é a segunda mais poluente do mundo, gerando 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano. O acúmulo de lixo, além de contaminar solo, água e ar, representa desperdício de recursos naturais e ameaça a saúde pública.
Seja a coleção de pôsteres de banda, de camisetas de time ou de tênis de marca, tudo faz parte do mesmo ciclo: consumir para preencher um vazio, para afirmar uma identidade, para pertencer – e, sem perceber, alimentar um sistema que lucra com nossos excessos e deixa para nós (e para o planeta) o peso do descarte. Talvez seja hora de repensar: o que realmente estamos buscando quando acumulamos tanto? E quem está, de fato, se beneficiando desse acúmulo?
Vou compartilhar um pensamento bem pessoal, daqueles que a gente quase não fala em voz alta por medo de julgamento. Minha mãe tem muitos objetos em casa, muitos mesmo, e é muito apegada a eles – sabe aquele tipo de pessoa que coloca valor emocional em cada coisinha? Algum tempo atrás, estava com meu filho na casa dela e ele, curioso como todo bebê, começou a brincar com aquelas pedrinhas que dizem ter poderes: pedra azul pra estresse, pedra roxa pra proteção, e por aí vai. Minha mãe logo pediu pra ele parar, dizendo que não era brinquedo. Mas, pra bebê, tudo é novidade, tudo vira brinquedo! Só que na casa dela tem objeto pra todo lado, então onde ele engatinhava queria pegar algo: porta-incenso, livros similares ao Café com Deus Pai, gatinhos de cerâmica… Ela ficou aflita, e eu acabei soltando: “Nossa, mãe! Por que você tá tão preocupada? Quando você morrer eu vou jogar tudo isso no lixo!” Sei que foi insensível, mas quero trazer essa reflexão pra cá.
Primeiro, sobre a impermanência. Tenho até uma tatuagem pra me lembrar desse conceito budista: tudo é impermanente, nada dura pra sempre, nem objetos, nem situações, nem pessoas. O budismo ensina que o apego é uma das principais fontes de sofrimento, pois alimenta a ilusão de que podemos controlar ou eternizar o que, por natureza, é passageiro. Quanto mais nos apegamos, mais difícil fica lidar com as perdas e mudanças inevitáveis. Objetos quebram, somem, deixam de funcionar – e a vida segue. O desapego não é frieza, mas liberdade: é entender que nada realmente nos pertence, e que a felicidade não está nas coisas, mas na experiência de viver.
Segundo, precisamos repensar o quanto estamos contribuindo para o acúmulo de lixo e o impacto ambiental das nossas escolhas. O consumo consciente propõe justamente isso: buscar formas de expressar nossos gostos e personalidade que não dependam do acúmulo de objetos, mas de experiências, conversas, trocas reais. Cada objeto a mais é mais lixo potencial no futuro. Só em 2023, o Brasil gerou 80 milhões de toneladas de resíduos – 382 quilos de lixo por pessoa em um ano. Por isso, antes de comprar ou guardar algo, vale se perguntar: isso realmente faz sentido ou só está ocupando espaço e alimentando o ciclo do desperdício?
Expressar quem somos pode (e deve) ir além do consumo: pode ser feito em conversas presenciais, em redes sociais, em atitudes. Praticar o desapego e o consumo consciente é um ato de cuidado com o planeta e com as próximas gerações. Afinal, cada escolha de hoje determina o tipo de mundo que vamos deixar amanhã.
Tenho plena certeza de que existe, na sua vida, alguém com quem você se importa. E essa pessoa, por sua vez, também se preocupa com outras, criando uma corrente de cuidado e responsabilidade que atravessa gerações. É assim que a humanidade avança: porque sempre há alguém desejando o melhor para o outro, sonhando com um futuro digno não só para si, mas para todos.
Você não precisa ser pai, mãe ou avó para desejar um futuro melhor para as próximas gerações. Basta reconhecer que cada um de nós carrega uma parcela de responsabilidade na construção desse amanhã. O futuro não é uma abstração distante: ele é moldado, dia após dia, pelas escolhas que fazemos agora – especialmente pelo modo como consumimos.
Muitas vezes, caímos na armadilha de achar que nossas ações individuais são pequenas demais para fazer diferença. Mas estudos mostram que mudanças de hábito em escala individual têm, sim, impacto coletivo significativo. Por exemplo, se cada brasileiro reduzisse em apenas 10% o consumo de produtos descartáveis, o país deixaria de gerar milhões de toneladas de lixo por ano. O consumo consciente, quando praticado por muitos, transforma realidades.
Como disse o filósofo Peter Singer, referência em ética prática e altruísmo eficaz, “nossas escolhas cotidianas têm consequências morais”. O que compramos, o que descartamos, o que financiamos – tudo isso reverbera no mundo, afetando pessoas que talvez nunca conheceremos, mas que também merecem dignidade.
A escravidão contemporânea por trás do consumo global
Deixei por fim o que talvez seja o aspecto mais cruel desse sistema, esse que pode ser até invisível para quem está do outro lado do clique da compra: o trabalho análogo à escravidão. Para que uma peça de roupa barata chegue até você, alguém provavelmente trabalhou longas horas em condições degradantes, recebendo salários irrisórios ou até mesmo sendo privado de liberdade. Casos recentes envolvendo grandes marcas como Zara, M. Officer e Animale mostraram trabalhadores – muitos deles imigrantes bolivianos e peruanos – costurando por até 16 horas diárias, vivendo em ambientes insalubres, sem direitos trabalhistas, para que o produto final pudesse ser vendido a preços baixos e margens de lucro altíssimas para os donos das marcas. E sim, essa responsabilidade também é nossa, enquanto consumidores.
Por trás de cada peça de roupa de R$ 20 ou eletrônico ultrabarato do AliExpress há uma realidade que nenhum anúncio mostra: trabalhadores explorados em condições análogas à escravidão. A Shein, por exemplo, enfrentou denúncias em 2023 de que funcionários em suas fábricas na China trabalhavam 75 horas por semana – o equivalente a 12 horas diárias, sete dias por semana –, violando até as já flexíveis leis trabalhistas locais. Muitos desses trabalhadores são migrantes de regiões pobres, submetidos a salários abaixo de US$ 1 por hora e dormitórios superlotados, sem direito a folgas ou licenças médicas.
A situação é ainda mais grave em plataformas como Temu, que, segundo relatório do Congresso dos EUA em 2024, não possui nenhum sistema para evitar que produtos feitos com trabalho forçado de uigures (minoria perseguida na China) cheguem aos consumidores. Investigação do The New York Times revelou que 80% dos fornecedores da Temu estão na China, onde o governo usa campos de “reeducação” para obrigar minorias étnicas a trabalhar em indústrias estratégicas.
Casos emblemáticos recentes:
- Shein: Em fábricas de Guangzhou, operários costuram 500 peças por dia para ganhar US$ 20 mensais. Muitos relatam dores crônicas por ficarem sentados até 17 horas em bancos de madeira sem encosto.
- Têxteis “made in Italy”: Marcas como Dior e Armani foram investigadas em 2024 por usar oficinas clandestinas na Itália, onde imigrantes chineses e paquistaneses trabalhavam 18 horas/dia por €3/hora, sem equipamentos de segurança.
- Eletrônicos baratos: Na Foxconn (fornecedora da Apple), trabalhadores montam 1.200 iPhones por turno em jornadas de 16 horas, sob risco de suicídio devido à pressão extrema.
O mecanismo da miséria:
- Salários abaixo da subsistência: Na Bangladesh, costureiras de fast fashion ganham US$ 0,13 por camiseta vendida a US$ 20. Para comer, precisam pedir empréstimos que as prendem em dívidas perpétuas.
- Trabalho infantil mascarado: Relatórios do Departamento do Trabalho dos EUA listam 145 produtos – de roupas a eletrônicos – feitos com mão de obra infantil na China, Índia e Paquistão.
- Riscos à saúde: Em fábricas de Shenzhen, operários inalam fibras de poliéster diariamente, desenvolvendo doenças pulmonares irreversíveis. Corantes tóxicos usados em roupas baratas causam dermatites graves e câncer.
A culpa não é só das marcas, mas do sistema: Empresas como Shein e Temu operam em um limbo legal internacional, usando o “de minimis” – regra que permite enviar pacotes de até US$ 800 para os EUA sem inspeção alfandegária – para burlar leis trabalhistas. Enquanto isso, governos fecham os olhos: menos de 0,4% das importações suspeitas de trabalho escravo são fiscalizadas no Brasil.
Como consumidores, financiamos essa máquina ao priorizar preços irrisórios sobre dignidade humana. Cada clique em “comprar” nessas plataformas é um voto a favor de um modelo que trata pessoas como commodities descartáveis – e o pior é que, como alertou o filósofo Byung-Chul Han, nem percebemos que somos cúmplices.
No fim das contas, o seu consumo não pode valer mais do que o seu ego. O desafio é justamente esse: colocar o bem-estar coletivo acima do desejo individual, entender que o planeta e as pessoas ao nosso redor dependem das nossas decisões. O futuro digno que desejamos para quem amamos começa com a responsabilidade que assumimos hoje.
Deixo aqui o acesso ao meu Doc com links de referência e leituras feitas para construção do texto: https://docs.google.com/document/d/1ty3969F02SpCr8E4cFqNhDB0ZurR5F2QuM3olvVPr7s/edit?usp=sharing
Texto previamente publicado no meu LinkedIn: https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:ugcPost:7322390652179107840/

